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17
fev-2021

Episódio 7: A Pesquisa – Podcast Brincar em Casa

Na sequência você confere a transcrição completa do sétimo episódio do podcast Brincar em Casa, criado e desenvolvido pelo Território do Brincar, com patrocínio do Instituto Alana.

Para ouvi-lo acesse alguma das plataformas de áudio abaixo:

Os episódios também estão disponíveis no Youtube com recursos de acessibilidade – legendas descritivas em português e Libras.

Nos  outros episódios comentamos que chegaria aquele que daria notícia de como foi feita essa pesquisa. E aqui estamos para contar os nossos desafios metodológicos, procedimentos, análises, exercícios coletivos e de como foram nossas reflexões e olhares. Ou seja, pegue sua caneca, sente-se e relaxe, pois vamos entrar em uma longa narração processual.

Partindo do início…

No começo de 2020 estávamos nas ruas de São Paulo pesquisando o brincar das crianças. Nossos olhares eram para os espaços, tempos e as relações que elas têm, ou não têm com essa cidade de imensas proporções.

De repente a pandemia do Corona Virus chegou ao Brasil e a cidade virou uma casa. Os espaços públicos se tornaram do tamanho de um quintal, as ruas viraram pequenos corredores, as praças tiveram que se encaixar nas salas e as escolas, entraram para dentro das telas. O que era de fora se tornou de dentro, e o ambiente público ficou do tamanho de uma única família.

Ou seja, a pesquisa presencial na cidade de São Paulo, precisaria ganhar nova rota.

As experiências anteriores do Território do Brincar, sempre foram pautadas por uma observação direta, onde o olhar, sentir, registrar, perceber e intuir, era processo decorrente de uma construção de vínculo com as crianças. Mas nesse novo cenário global, essa pesquisa de observação, precisaria ser distante não só das crianças, mas de seu contexto geral.

Logo de início uma grande inquietação fez parte dos encontros com o grupo de pesquisadores responsáveis por esse trabalho. Daquele tipo que nos leva a transformações importantes. Como seguir a pesquisa sem o presencial, o visual e o vínculo direto com as crianças? Depois de muitos debates, alterar para uma escuta online com as famílias, pareceu a decisão mais evidente.

Mas era preciso alcançar uma conversa que fosse além de saber do que as crianças estavam brincando ou das suas angústias vividas nesse período de isolamento. Nosso fenômeno é o brincar espontâneo, neste caso o brincar espontâneo durante a pandemia. O foco seria perceber como ele ocorria em um cotidiano tão modificado e em espaços e relações tão reduzidos.

Olhar para situações espontâneas e nos contar delas, é um desafio, mesmo para quem tenha criança por perto, afinal a expressão espontânea da criança  não tem hora nem lugar marcado para acontecer, ela simplesmente se manifesta. Para isto precisamos ter “olhos e ouvidos de achar”. E como fazer isto? Era preciso provocar, perguntar e conversar com as famílias sobre algo que talvez não estivessem tão acostumados a ver.

Para isso, criamos um questionário que iria transitar pelo contexto de cada criança, seus ritmos, suas rotinas e interesses e, assim, nos levar ao espontâneo no brincar.

O nosso objetivo era claro, dar uma espiadinha para dentro das casas para ter notícias dos seus gestos íntimos, barulhentos, silenciosos, preferidos, novos ou antigos desse brincar em casa.

Precisávamos que pais e mães nos trouxessem um olhar atento, curioso e até com um certo tom de encantamento para que as entrelinhas nos conduzissem ao nosso objetivo.

Foi o que comentou uma das pesquisadoras em um desses encontros:

Às vezes você acha uma coisinha em uma, uma coisinha em outra, mas quando você vai observar a campo as crianças brincando é assim também: ‘Ah, olha, eles brincam, olha as atividades.’ E fica: atividade pra lá e pra cá e, de repente, você pega. Então isso, quando a gente conseguir encontrar isso nesse contexto de entrevista de questionário, por que a gente tá falando de uma brecha, de um algo espontâneo. Eu acho que vai ser uma coisa muito especial, entendeu, assim, de achar… é ali que tá o espontâneo, mas a gente vai ter que achar. E a gente vai ter que achar juntos isso.” 

O caminho metodológico trilhado há algum tempo nas pesquisas do Território do Brincar é a fenomenologia. Este nome comprido que para falar quase enrola a nossa língua, nos ajuda a ultrapassar a superfície daquilo que vemos, para encontrar sua intencionalidade. Ou seja, é uma abertura à experiência vivida, ao que ela se mostra, e ao que o fenômeno revela, fugindo do que possam determinar alguns pré-conceitos.

É também uma experiência de atenção, que está aliada à própria existência de quem está observando, escutando, descrevendo. Um certo estado de consciência de si, para se alcançar uma consciência do fenômeno. Para isso, a empatia ao que se observa é condição primeira. E o que se segue é um processo insistente e constante de contato com os fatos e suas narrativas, até que algo se desvele, se mostre. Um verdadeiro trânsito por etapas e circunstâncias que guiam uma transição entre o ver e o perceber.

Essa percepção pede por sua vez que caminhemos por diferentes ângulos e camadas, como quem olha para uma bacia com água e a vê por diferentes espectros. Em primeira instância vê-se um conjunto completo. Poderia ali ficar, porém, aguçando mais o olhar, transita-se a visão para uma sujeirinha depositada na superfície da água. Desfocando-se dessa sujeira, o olhar vai para o desenho do fundo da bacia reconhecendo uma outra dimensão do mesmo espaço. Indo um pouco mais adiante, desprega-se do fundo e chega-se ao reflexo de uma nuvem à tona na água. E assim, somos convidados a aprofundar o nosso olhar por meio de  diversas perspectivas, dentro de um único fenômeno.

Com essas questões metodológicas praticadas e refletidas entre o grupo de pesquisadores, e com o questionário construído, outro aspecto importante foi a definição do perfil dos entrevistados e a organização desses contatos.

Conversamos com famílias de crianças que moram em espaços muito diferentes uns dos outros, como casas, apartamentos, ocupações, abrigos, comunidades, moradias compartilhadas; crianças indígenas que moram em cidade grande; crianças de famílias afro descendentes, de famílias homoafetivas, de pais separados, de mães solteiras, também as que vivem com o pai e com a mãe. Crianças com alguns tipos diferentes de deficiências, filhos únicos ou com muitos irmãos; crianças que moram com avós e tios; e de variadas classes socioeconômicas. Buscamos propositalmente toda a diversidade possível. As famílias foram selecionadas primeiro a partir de uma indicação, que eram seguidas de outras, e assim sucessivamente.

Tendo atingido perfil e diversidade desejados, seguimos elaborando materiais de apresentação da pesquisa e da proposta, para que os procedimentos fossem os mais transparentes possíveis, considerando parâmetros éticos de pesquisa.

Qualquer pessoa da família com contato próximo e diário  da criança poderia responder as perguntas. Das 55 famílias entrevistadas estivemos conversando com 42 mães, 06 pais, 03 casais respondendo em conjunto, uma avó, uma tia que é a responsável pela criança, uma gerente de um abrigo e uma coordenadora de um projeto hospitalar.

Os questionários foram respondidos por meio de conversas por whatsapp ou telefone por envio de áudios ou por escrito, ao critério de escolha de cada família. Muitas histórias foram contadas. Tivemos respostas breves e rápidas. Conversas maiores que pareciam mostrar a saudade de falar de outros assuntos. Outras que foram respondidas por escrito para não fazer barulho, enquanto as crianças dormiam. Entrevistas em áudios encaminhadas durante uma semana inteira, algumas realizadas online, e aquelas em que a família toda interagia. Muitas interrompidas repentinamente, por demandas das crianças e da casa e retomadas quando surgia um tempinho. Mas em sua grande maioria as conversas aconteciam por whatsapp. Todo o conteúdo foi gravado em áudio e posteriormente transcrito.

Além de responder ao questionário convidamos, também,  as famílias, que se sentissem confortáveis a nos enviar imagens em fotos ou vídeos de suas crianças brincando, nos ajudando a olhar para esse brincar. Essas imagens subsidiam toda construção do nosso documentário e dessa série de podcasts sobre esse tema.

Com as transcrições e imagens em mãos, voltamos a nos questionar para onde focar a nossa atenção enquanto líamos as entrevistas. Agora, a leitura era um fenômeno. Como poderíamos ler como se estivéssemos frente às crianças numa observação ativa e, então, trazer para a nossa investigação a habilidade de perceber, sentir e intuir, para depois fazermos reflexões do processo em grupo?

Uma das pesquisadoras nos trouxe uma frase do fenomenólogo Henri Bortoff, para nos ajudar a lembrar que a percepção só pode verdadeiramente começar quando a gente devagariza, essa palavra que livremente traduzimos do “slow down”. Tínhamos que confiar, então, em nos devagarizar.

Para isto o primeiro  desafio era  visualizar o fenômeno concreto – não fantasiá-lo ou embelezá-lo, mas sim imaginá-lo o mais próximo possível dos fatos. Esta é uma disciplina que exige bastante de cada um dos pesquisadores, no sentido de não adicionar nada que não esteja lá na cena do acontecimento em si, e ao mesmo tempo não deixar nada de fora. Ou seja, deixar que os fatos falem por si próprios.

Depois, passamos a nos perguntar o que ficava conosco quando já não estávamos lendo. Que histórias estávamos contando por aí ou que tinham ficado presentes nos nossos pensamentos? Conseguíamos lembrar de detalhes? Quais ? Éramos capazes de recontar esses detalhes?

E esse é um passo importante para trazer o fenômeno mais “pra dentro” de nós. Significa estar criando “espaço” para receber as experiências em vez de tentar capturá-las. Assim o fenômeno e o pesquisador vão se familiarizando, conquistando intimidade, “estreiteza” para assim tornarem-se  participantes dos fatos, sem a habitual separação do pesquisador e seus objetos.

Para exemplificar melhor esse pensamento, trouxemos essa tradução livre da autora Emma Kidd, do seu livro chamado: First steps to see-ing. Ela diz assim:

A prática da fenomenologia reconhece que na nossa experiência direta existe uma conexão criada entre nós e o mundo, e através dessa união podemos perceber verdades que não são apenas uma reflexão acurada da nossa experiência individual, mas que são verdades do próprio mundo.”

O passo seguinte da leitura das entrevistas, foi exercitar maneiras de sair de uma conduta cognitiva e lógica desse material, e percebê-lo por outros vieses. Nos propusemos, por exemplo, a exercícios coletivos de leituras de trechos pré-selecionados e fizemos desenhos abstratos do que líamos.

“Me peguei desenhando algo como se fosse uma partitura de música. E conforme foi ficando assim, uma historinha, era quase um desenho de uma linha só mas que ia desenhando bem, mais ou menos o que estava acontecendo.”

“E aí depois o desenho passa a parecer um eletrocardiograma, e aí um momento que dá uma certa estabilidade nesse eletrocardiograma é o momento quando a família tá junta, né, quando a família se encontra na hora da refeição ali.”

E da mesma maneira ouvimos e construímos textos coletivos de temas específicos relatados pelas famílias, como as descrições das mesas de cada casa, os brinquedos bem pequeninos dos quartos ou as conversas online com os avós. Dos textos reduzíamos à frases, e das frases condensávamos em palavras que trazem a essência de cada contexto.

“A palavra parece ser “embaixo”… da mesa, da cama, da prateleira, da estante, do tapete. Tudo é pequenininho, os brinquedinhos miúdos. A importância, então, do segredo, do miúdo, do silêncio, do ninho, do canto e da solidão.”

Essas foram algumas das práticas que fizemos para processar esse conteúdo de uma forma mais aberta e que incluam outros sentidos, para não ficarmos presos a leituras áridas e analíticas.

Debruçados sobre este material e separando as ações e relações das crianças por temáticas, percebemos que alguns temas atravessavam a todos. Passamos a perceber, por exemplo, que as crianças, independentemente de suas diferenças, brincavam de formas muito semelhantes, provocadas pelos cantos, materiais e espaços da casa.

Foi muito interessante, por fim, enxergar, que para além das dificuldades naturais desse período, as crianças e as famílias atravessavam a pandemia de forma criativa, inovadora e até curativa, dialogando com os mais diversos ambientes que compõem uma casa, fossem eles reais ou simbólicos.

E, assim, devagarizando e escutando os fatos relatados é que surgiu naturalmente a ideia de criarmos uma série de podcasts.

A meta inicial era produzir um artigo e um documentário a partir dessa pesquisa, mas o podcast foi se criando dentro de nós, até o ponto que já nos parecia óbvio seguir nessa produção. E em paralelo produzimos ainda o documentário que faz um diálogo direto com todo o conteúdo criado nos textos dos podcasts.

O questionário foi o instrumento que impulsionou toda nossa conversa com as famílias. Iniciávamos como quem vai fazer uma primeira visita na casa de novos amigos, e quer conhecer o espaço onde moram.

Começamos perguntando sobre cada ambiente.  Queríamos  uma descrição detalhada sobre o uso desses espaços pelas crianças. As descrições eram muito variadas, mas percebemos que vinham acompanhadas de adjetivos aos tamanhos e formatos deles.

“Minha casa tem três quartos onde cabe uma cama e talvez um guarda roupa bem pequeno. Tem quarto que não tem guarda roupa, então uma cama de casal e o espaço muito estreito para um guarda roupa. Num quarto dorme meu filho com a mulher dele e duas crianças. Na outra dorme meu filho adolescente. Aí no outro dorme eu e meu marido.”

Para alguns a pergunta parecia intimidar. Exigia da gente cuidado e delicadeza para não “invadirmos” a casa. Assim aguardamos o tempo de cada família. Afinal, ninguém entra na casa dos outros sem ser convidado!

“Essa parte é complicada. A gente mora em um apartamento de aproximadamente 64 metros quadrados. É um espaço pequeno, né.”

Também houveram relatos que apresentavam muito carinho e simpatia pela casa.

“A gente mora nesta casa há sete anos. A gente tem uma relação muito afetiva com essa casa. Não é casa própria, é uma casa alugada, mas que a gente ama tanto este lugar….”

Iniciar pela descrição do espaço, nos localizava no contexto de cada família, levando nossa atenção aos ambientes de uma casa e do uso deles pelas crianças.

“Na sala de jantar, além das refeições, é o lugar também que o Rafa faz a lição de casa dele de manhã, mas é também o lugar que a gente faz desenho… é colar, é criar. Porque o Rafa gosta muito de inventar, criar. Quase todo dia ele faz alguma coisa, ele constrói alguma coisa. O que é super divertido, mas também faz uma bagunça imensa.”

“Mas, olha, agora na quarentena ela tá ocupando todos os espaços, assim, porque a gente cozinha muito juntas, né. Então ela fica muito na cozinha também. Nossa, ela ama, ela adora, é uma figura né. A gente inventa um monte de coisa.”

Após este “começo de prosa”, naturalmente a conversa já se enganchava nos tempos que permeiam esses espaços e, às vezes, nem era necessário formalizar a segunda  questão que se referia a um tema essencial na vida das crianças: o seu ritmo cotidiano.

Embora o pedido fosse um relato sobre o ritmo das crianças durante a pandemia para  só depois saber como era antes dela, quase sempre a resposta começava ao contrário.

 “Vou falar primeiro como era antes do isolamento. Antes do isolamento, entre seis e sete da manhã eu acordava Ventura, ele se arrumava e ia pra escola. Não era muito uma regra, mas ele comia alguma coisa antes de ir, e ele tava indo sozinho já pra escola.” 

 “Depois da quarentena, tudo mudou. Os horários de Manu se desregularam bastante, bastante mesmo, e isso é o efeito colateral maior que a gente tá vendo na quarentena.”

Algo que nos chamou muito atenção foi ouvir que antes da pandemia a grande maioria das famílias tinha os tempos cotidianos regidos por atividades externas. Poucas faziam refeições em conjunto durante a semana, e passavam a maior parte do dia fora de casa. Ou seja, o ritmo do dia a dia era regido pela escola, pelo trabalho e outras particularidades de cada família. Quando veio a pandemia, principalmente antes que as escolas se organizassem com o novo contexto, os ajustes dos ritmos das crianças foi um tema de muitas dúvidas e desconfortos.

Com todos juntos no mesmo ambiente, a percepção de núcleo familiar ficou mais evidente. Foi preciso reinventar as relações e reestruturar os ritmos dentro de casa, o que foi um desafio para muitos.

Após as duas perguntas iniciais sobre os espaços e tempos da família, a conversa já havia conquistado fluidez e intimidade. Era hora de começar a olhar, especificamente, para a criança. Começamos pelo que chamava atenção no dia a dia, para depois a descrição de gestos espontâneos, brincadeiras recorrentes, expressões diversas e relacionamentos com a família e com o mundo.

Esse bloco de perguntas era um guia para ajudar o pesquisador a se aprofundar na escuta da criança e do seu brincar. Lentamente, uma de cada vez, as perguntas acompanhavam a fluência e a autenticidade da conversa. O que nos surpreendeu foi a dúvida de muitas famílias em relação à observação da expressão espontânea da criança. Um dos pesquisadores chegou a fazer o seguinte comentário:

“Eu acho que pra essas duas foi bem difícil. Assim, elas estavam bem felizes por terem essas perguntas pra responder, mas também sentiam um desconforto. O que é brincar mesmo? O que que é jogar? Brincar, jogar, brincar de jogar. ‘A minha filha queria brincar de lavar louça, mas brincar de lavar louça?, lavar louça é brincadeira, não é brincadeira?’ Eu senti que foi uma coisa bem desafiadora.”

“É, não sei te dizer, espontâneo, talvez eu não veja muito nada, não, assim.”

 “Deixa eu pensar um pouco aqui. Deixa eu só pedir um auxílio para minha esposa. Ah é. Ok, lembrei.

Comentar o que era o espontâneo no brincar muitas vezes era algo novo e até difícil de compreender. Mas nomear as brincadeiras recorrentes, aí sim era mais fácil.

A maior parte contava do que as crianças brincavam, mas confessaram não saber detalhes dessas brincadeiras. Uma mãe nos contou que via sua filha brincando diariamente de casinha, mas não sabia dizer o que acontecia ali. Muitos disseram o mesmo.

E era também difícil quem soubesse como as brincadeiras aconteciam do início ao fim dessas atividades.  

“Isso é uma pergunta bem interessante porque eu também estive ponderando isso. Como começam essas brincadeiras? Estes pequenos momentos de brincar, aqueles que eu não estava envolvida, como será que eles se iniciam? Eu realmente não sei, mas, às vezes, quando percebo que não sou chamada por alguns instantes, vou checar onde eles estão.”
(“This is such an interesting question because I have wondered this myself. How do these games start? These little pockets of play, the ones that I was not involved in, how did they begin? I don’t really know all the time, but sometimes I’ll just find that I’ve been not interrupted for several minutes at a time and I’ll just go see where everybody is.”)

E durante a própria entrevista, pais e mães iam se dando conta do quanto não conseguiam descrever o enredo de uma brincadeira dos seus filhos e filhas. Percebiam que, muitas vezes, na demanda da vida cotidiana, não enxergam ou não escutam os detalhes que se apresentam à sua frente.

Aqueles que se inquietaram com isso seguiram em observações mais apuradas e se mantiveram nos enviando fotos e vídeos de momentos singelos e delicados, outros criativos e singulares, do brincar das crianças.

Mas as perguntas não paravam por aí. Passo a passo íamos nos  adentrando em cada camada do brincar das crianças em casa. Para isso, ainda era necessário saber também sobre suas relações online com amigos e familiares, seus movimentos corporais e diferentes expressões, como por exemplo: desenhos, músicas, histórias e sonhos.

Ouvimos muitos sentimentos de saudades, tristeza e angústia pelo isolamento social. Ainda assim, o valor positivo deste momento compartilhado em família apareceu em muitos relatos:

“O tempo é muito corrido e às vezes a gente não tem tempo  com as crianças.  Às vezes eles aprendem algumas coisas e a gente não tem tempo para observar. E eu acho que esse é o momento de ficar com eles mesmo. De prestar mais atenção. De ver onde eles precisam mais de ajuda, onde eles precisam mais de carinho. De verdade eu acho que eu estou gostando desse momento.”

Quanto às possibilidades corporais, as restrições foram bruscas e repentinas e as crianças tiveram que se readequar aos contornos limitados dos espaços fechados. Os movimentos relatados pelas famílias iam do gesto expansivo como os insistentes pulos e acrobacias em camas e sofás, aos movimentos leves e fluidos de muitas danças pela casa, até a solidão e quietude dos quartos. As novas habilidades adquiridas na cozinha e os cantinhos de refúgio das cabanas e casinhas, foram também os mais comentados. Movimentos e atividades diversas que vinham, muitas vezes, seguidas de comentários positivos, como se ao relatar, algo se tornava mais evidente, mais visível e, portanto, deixava de ser uma resposta baseada em conceitos ou ideias. Dizer dos fatos reais, parece que criava uma proximidade entre o que fazem as crianças e o que costuma-se pensar que fazem, e isso parecia trazer um certo alívio para alguns dos entrevistados.

As expressões em desenhos, e a leitura de livros e gibis também vinham com frequência nos relatos e sempre com um certo tom de orgulho e alegria, dentro das tantas frustrações que tivemos que viver nesses períodos.

Por fim, quando parecia que não havia mais perguntas, deixamos aberto um espaço para o que quisessem nos contar.

E surgiram reflexões importantes sobre nosso contexto brasileiro:

“Essa dificuldade de colocar as crianças num confinamento e não ter outras crianças, né. Aqui em casa sempre acaba vindo a vizinha, que é parente. As crianças acabam vindo, assim, porque estão muito próximas. E eles acabam se sentindo sozinhos e aí um fica gritando na porta pelo outro: ‘O, fulano!’, ‘O, ciclano!’ E aí a gente acaba cedendo, né, porque… enfim. Mas a gente tenta ter o maior cuidado. Mas é bem difícil ter uma criança num apartamento e uma criança numa comunidade, onde os vizinhos estão, né, na porta da gente. Isso é muito difícil, é bem diferente de confinamento de apartamento ou uma casa cheia de estrutura, com uma grade, murão… e dentro de uma comunidade, o que divide uma casa da outra é um barranco, por exemplo. Essa é a diferença.”

Outras vezes eram reflexões muito íntimas e pessoais da relação de mãe e filho:

“O Otto que é o mais novo, até foi uma coisa que o questionário me fez pensar sobre, tem duas coisas que o questionário me fez pensar sobre o Otto, assim. Uma, ele tem recortado muito, muito. Eu até então, antes do questionário, eu estava olhando pra isso como, ‘Ai, meu Deus, mais papel pra varrer’. Não sei, até pensei em olhar mais pra isso com mais cuidado e ver porque que ele ta fazendo isso, conversar com ele um pouco, aonde ele vai chegar com isso. Dar um pouco mais de contorno pra ele e ajudar ele a entender o que que é que ele ta fazendo e não só reclamar de um monte de papel no chão pra varrer.”

Toda essa conversa começou em abril de 2020 e até junho ainda nos chegavam mais relatos e imagens. Com o prolongamento da pandemia surgiu mais um aspecto importante a saber: o decorrer do tempo em casa. Assim, decidimos fazer mais um  contato.

Foi caloroso este retorno, que começava com relatos de como as crianças haviam crescido e aspectos que mudaram desde a última conversa.

“Tem que lembrar que a Clara, minha filha, que está agora com 10 anos entrou na quarentena com 9, mas fez 10.”

“Mas a Lis fez 7, né, ela fez 7 no último mês, então foi uma virada, uma chave grande ali que aconteceu em termos de desenvolvimento, em vários aspectos. E principalmente o motor, eu percebo.”

“Engraçado, dentro desse período o Gael mudou muito, né. Cresceu também, né. Mudou alguns gostos e comportamentos. Não pela pandemia, mas por ser normal da idade dele. Então, ele chegou aqui na Itália em um momento que ainda era muito, digamos que antissocial. Então ele tem essa coisa de querer todo dia ir pra rua pra socializar. Tem aqui perto uma igreja que bate o sino várias vezes no dia. Geralmente duas vezes de manhã e duas vezes de tarde. Tipo: 8h, 12h, 18h e 20h. Então toda vez que bate o sino às 18h e às 20h, ele corre e fala: ‘Mamãe, papai, o sino diz que tá na hora de ir pra rua.’”

Se no início da pandemia, a nossa percepção de espaço mudou completamente, talvez de forma mais sutil, as relações com a qualidade de tempo também foram se modificando, principalmente, com o prolongamento desse período.  Viver um dia de cada vez sem saber minimamente sobre o futuro, fez com que algumas famílias perdessem um pouco da noção dos dias da semana ou do mês. Já para outras, os tempos se mostraram nas mudanças de comportamento das crianças ou até na relação com as estações do ano.

“Então eu percebi sim que houve uma diferença…. Então, por exemplo, aqui ela estava no início, quando a gente conversou, ela tava muito mais ativa porque ela dançava na frente dos vídeos que ela adora direto. Pulava, corria e tal, mas também é porque era um período que não era frio, né! A gente tava no outono ainda e agora entrou o inverno e a gente mora no sul do país então faz muito frio aqui então as próprias brincadeiras mudam muito. Ela, antes, quando a gente tava conversando ela explorava bastante o quintal, mas depois ela voltou para casa mais, né. Ficou mais dentro de casa, a gente fica mais fechadinho mesmo e tal. Então as brincadeiras tiveram realmente um tom mais intimista.

“E quando a gente saiu do fim da estação chuvosa e o vento chegou com muita força um tempo atrás… talvez há pouco mais de 1 mês…  e as brincadeiras dela pareceram acompanhar essa presença do vento que foi ficando mais forte.”

O tempo estendido em casa trouxe o desejo cada vez mais forte de se relacionarem com os amigos que, na sua maioria, são colegas de escola.

“Eu notei que no primeiro momento da entrevista ele lembrava de muita coisa, estava achando gostoso estar isolado em casa. Lembrava da escola, dos amigos, dos professores e tal. E agora ele esqueceu, ele está esquecendo e tem pedido de fato que ele quer voltar pra escola.”

Mas esse passar do tempo ajustou o ritmo de muita gente: 

“Ele tá num ritmo melhor, assim, tá num esquema mais: ‘Mãe, vou estudar agora, depois eu vou fazer um descanso. Depois eu estudo de novo.’ Num ritmo dele. Achei legal que ele criou um ritmo dele também. Eu não preciso mais ficar cobrando nem nada. Super responsável na execução e nas entregas das tarefas. E eu to muito mais tranquila com isso também.”

A sensação mais comum foi que, mesmo com a pandemia, a vida se seguia. 

“Mas assim, a vidinha deles continua e a brincadeira não deixou de acontecer por conta da COVID e ainda continuo pensando que é muito difícil da  gente cercear as crianças desta relação coletiva que eles tanto têm. Então eles brincam, se beijam, enfim, é isto que acontece não mudou muita coisa eles continuam brincando juntos. 

E o brincar mais livre espontâneo que, no início foi tão difícil de relatar, foi encontrando o seu lugar:

“Eu sempre condicionei muito o brincar da Yasmin, talvez eu seja um pouco criteriosa demais porque eu sempre acreditei na excelência do brincar, né. Mas pelo momento da pandemia, é um pouco difícil você ficar controlando a questão do… o quê, como fazer o brincar. Então eu acabei dando um pouco mais de liberdade pra ela, pra ela poder escolher as brincadeiras dela e ver com que isso ia fluir.
Então eu parei um pouco de ficar tentando direcionar tanto o brincar delas, parei de ficar em cima. Eu observo, mas agora um pouco mais de longe.”

E este brincar se mostra como um lugar de alívio de digestão de tantos meses em pandemia, trazendo notícias de questões que agora precisamos considerar fazendo parte de nossas vidas:

A Mariana é muito espontânea nas brincadeiras, então quando ela pega alguns brinquedos e vai brincar, eu percebo que ela incluiu umas frases que não tinha antes. Por exemplo, ‘Ah, mas o seu pai morreu’, sabe alguma coisa assim, nesse sentido? Então acho que a questão da pandemia, às vezes o que é conversado em casa, ela acaba absorvendo, né, e assim, essas frases na brincadeira dela começou a aparecer mais, coisa que nunca tinha antes.”

As perguntas terminaram, mas o vínculo parece que aconteceu e se estabeleceu, mesmo sem o encontro presencial. Essa pesquisa abriu uma comunicação com muitas famílias, que seguem em trocas com os pesquisadores, das mais diversas formas. Inclusive, todo o empenho da produção, em mantê-las informadas dos nossos passos e etapas, têm reforçado esse vínculo.

No finalzinho desse longo processo, recebemos um depoimento de uma parceira de trabalho, que exprime nosso sentimento de gratidão pela oportunidade de perceber, olhar, escutar e  se inclinar para a criança.

Quando apresentamos trechos de um episódio, ainda em fase de finalização, ela falou assim:

“E olha, enquanto a Renata transmitia o trechinho do áudio do podcast eu me observei meio tombada no computador para escutar melhor – eu tava sem fone. E quando terminou eu achei a minha posição um tanto engraçada e fiquei curiosa. Sabe, eu tenho aqui em casa um dicionário etimológico. Eu guardo um amor enorme por ele, pelo gesto de virar página por página. Coisa minha. E eu fiquei surpresa quando li no dicionário que escutar remonta ao inclinar-se, inclinar-se pra tornar-se atento. E aí eu pensei ‘Tem gesto mais sacralizado do que esse de inclinar-se? De curvar-se? De se enrolar, que é o que a nossa orelha se tornou ao longo do tempo.’ Fiquei profundamente afetada por este processo de transformação do olhar e do escutar que vocês no Território do Brincar fizeram. E eu só tenho mesmo que agradecer de poder receber tudo isso.”

Ao fim, nos nossos últimos encontros percebemos como essa pesquisa foi importante não só no que tange o brincar. Ela foi reveladora e transformadora para cada um e cada uma de nós. Junto com as famílias entrevistadas, pensamos sobre o contexto atual, grande e pequeno. O brincar mostrou sua força e inventividade, mesmo na adversidade. E pudemos perceber que as crianças apontaram caminhos importantes nos seus ritmos, nas relações familiares e na sua própria autonomia, por meio do brincar em casa.

Agradecemos aqui, especialmente, as famílias que caminharam conosco nesse período. Nosso imenso muito obrigada.

CRÉDITOS  

Brincar em Casa, este podcast do Território do Brincar foi feito com o patrocínio do Instituto Alana. Agradecemos todas as mães, pais, tias e avós que conversaram sobre suas experiências de quarentena. Agradecemos você, ouvinte pelo interesse e retornos. Agradecemos o grupo de Pesquisadores, Elisa Hornet, David Reeks, Gabriel Limaverde, Lia Mattos, Reinaldo Nascimento, Renata Meirelles, Sandra Eckschmidt, e Soraia Chung Saura que dedicaram tanto do seu tempo contemplando, dividindo, entrevistando, e analisando esta experiência. A Coordenação da pesquisa é de Sandra Eckschmidt e Renata Meirelles, essa que vos fala. A edição e desenho sonoro deste episódio é de Fernanda Leite. Co-direção e finalização de David Reeks. Mixagem Som de Black Maria.  Trilha sonora Blue Dot Sessions. Produção de Renan Paini. Assistência técnica de Guilherme Annes. A equipe do Território do Brincar: Thais Oliveira Chita e Maria Clara da Silva Matos. Até a próxima.

 

 

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