fev-2013
Valor Econômico – Um país de brincadeira
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08/02/2013
Por Kátia Mello
Numa manhã de domingo de julho, um exército de crianças esfrega no rosto uma mistura de óleo de cozinha e carvão moído. Os lábios são pintados de um vermelho forte de papel crepom para simbolizar a dor dos escravos. São os negros fujões ou “negas”, como são conhecidos os personagens de um grande espetáculo teatral realizado a céu aberto no município de Acupe, no distrito de Santo Amaro da Purificação (terra de Caetano Veloso), no Recôncavo Baiano. Vestidos de saias rodadas confeccionadas artesanalmente com folhas de bananeiras, os fujões correm por todos os cantos da cidade para não ser apanhados pelos caçadores, que, também com seus rostos pintados de preto, se lançam nessa caçada frenética paramentados com suas espingardas. Quando uma “nega” cai, é logo amarrada e obrigada a percorrer a cidade pedindo dinheiro em prol de sua alforria.
O desavisado que chega a Acupe pode pensar que os moradores estão em guerra, tal a intensidade da tradicional brincadeira Nego Fugido, que remonta ao século XIX, em um ritual criado pelos escravos de origem africana nagô, após a abolição da escravatura. As cenas do Nego Fugido foram registradas pela educadora e pesquisadora Renata Meirelles e pelo documentarista americano David Reeks como parte do projeto Território do Brincar – Um Encontro com a Criança Brasileira.
Como o próprio nome já diz: é a voz da criança que impera. “É um olhar de como a criança brinca hoje no Brasil e não um documento histórico que resgata as antigas brincadeiras dos mais velhos”, diz a educadora.
Renata, casada com Reeks, pesquisa brincadeiras há mais de 16 anos e resolveu partir de São Paulo em abril para uma jornada de dois anos por diversas comunidades brasileiras, de quilombolas, tribos indígenas a pequenos municípios do sertão. Nessa viagem, resolveu levar na bagagem seus filhos Sebastião, de 5 anos, e Constantin, de 3. Renata conta que esse trabalho é uma continuidade de seu projeto anterior – o Bira, uma imersão nas façanhas das crianças da Amazônia que resultou em alguns curtas-metragens premiados e no livro “Giramundo e Outros Brinquedos e Brincadeiras dos Meninos do Brasil” (editora Terceiro Nome), vencedor do Prêmio Jabuti.
De forma sensível, a dupla segue registrando as brincadeiras por fotos, vídeos e textos que posteriormente serão transformados em um documentário, um livro e uma série de TV sobre a infância brasileira. O projeto é apoiado pelo Instituto Alana, uma ONG que apoia iniciativas voltadas à criança. O Território do Brincar vai além de um simples registro. A ideia é levar esse universo infantil para dentro das escolas urbanas. Em todos os lugares, Renata está atenta ao que as crianças lhe apresentam. Depois de assistir às brincadeiras e conhecer brinquedos criados por elas, a educadora prepara um material compartilhado com professores e coordenadores pedagógicos, por intermédio de reuniões mensais por Skype. Fazem parte do projeto as escolas paulistanas Vera Cruz, Oswald de Andrade, Instituto Sidarta, CEI Alana, a Escola Viverde de Bragança Paulista, no interior de São Paulo, e a Casa Amarela, em Florianópolis (SC).
Por meio de um texto ou de um vídeo, Renata abre uma discussão sobre o significado de uma determinada brincadeira. Ela faz questão de dizer que as temáticas não chegam prontas, mas são janelas para mentes e corações refletirem sobre como esses brasileirinhos estão vivendo a infância. “Apesar das diferentes culturas, existe uma universalidade na infância. Nas diferentes regiões, as crianças fazem atividades semelhantes numa busca intrínseca do que desejam para si próprias. Subir numa árvore, por exemplo, é sempre uma conquista, seja num parque ou numa aldeia indígena”, observa.
Em Acupe, além do Nego Fugido, Renata assistiu ao ritual das caretas, em que os guris aprendem a lidar com o medo. Nesse ritual, um grupo se veste com máscaras e empunha um chicote. Uma turma de mascarados sai assustando e provocando os outros meninos que correm pela cidade afora. E correm muito por temer ser alcançados pelo chicotinho. As crianças escolhem livremente se querem pertencer ao grupo das caretas ou não e até o fim do dia vão alternando os personagens. Assim como o Nego Fugido, o ritual das caretas de Acupe ocorre em julho. As máscaras assustadoras são feitas por Seu Dodô, que as molda com lama, goma e papelão sob a sombra de um pé de manga.
A diretora e coordenadora da escola Casa Amarela de Florianópolis, Sandra Eckschmidt, conta que gostou de uma pipa bem simples feita por esses meninos baianos. Ao assistir à montagem do brinquedo, Sandra teve a ideia de fazer um evento com os educadores, os pais e os alunos num fim de semana num parque para empinar pipas fabricadas em conjunto. “Muitos pais se lembravam de como faziam pipas porque tiveram uma infância mais livre que seus filhos”, conta. E lamenta que a sociedade contemporânea esteja se distanciando do livre brincar: “Estamos tão preocupados com o futuro de nossas crianças que deixamos de lado a vivência momentânea. Sem querer, a gente vai se afastando do essencial, que é deixá-las brincar de forma espontânea, sem essa constante preocupação pedagógica”. De acordo com Sandra, tanto pais como educadores precisariam entender que a criança precisa de tempo e espaço para poder fazer as próprias investigações e suas invenções.
Para Roberta Rodrigues Alves, coordenadora do projeto no Instituto Alana, o mérito de Renata é “sensibilizar o educador, fazendo que ele se torne mais atento e respeitoso em relação às demandas das crianças”. Roberta está acompanhando todos os encontros com as escolas e aponta algumas discussões de relevância. “É preciso abrir espaço para que as crianças sejam elas mesmas. As que estudam nos grandes centros estão sempre muito ocupadas dentro e fora da escola. Elas também acabam sendo superprotegidas e, assim, deixam de vivenciar experiências importantes para a infância”, afirma a coordenadora. Uma das sugestões é ampliar o tempo de recreio das escolas. Outra é proporcionar maior interação entre os mais novos e os mais velhos, o que acontece naturalmente fora do âmbito escolar.
Renata costuma explicar o Território do Brincar aos moradores das cidades que visita por meio do uso de vídeos de brincadeiras gravadas em viagens anteriores, para que eles possam entender melhor o projeto e passar a participar dele. Assim acontece desde sua primeira parada em duas comunidades de pomeranos (descendentes de eslavos e de alemães que falam a língua pomerana) nos municípios de Santa Maria de Jetibá e Pacas, no Espírito Santo.
Em Santa Maria de Jetibá, ela reuniu todos numa escola para depois acompanhar os meninos e meninas nas tarefas diárias da agricultura. Na roça, os bebês ganham um berço em forma de carrinho de madeira para não ficar longe dos pais. Os maiorzinhos recebem suas enxadinhas e se aventuram a manusear serrotes para construir carros e ônibus de madeira com capacidade para levar até quatro pessoas. Uma atividade rara encontrada entre os meninos pomeranos é tocar o instrumento concertina, uma espécie de acordeão tradicional da cultura germânica. Antes de deixar a cidade, Renata e Reeks organizaram uma exposição de brinquedos produzidos pelas próprias crianças e famílias pomeranas.
O contato inicial com as comunidades nem sempre é imediato. Muitas vezes são os pequenos que fazem a ponte com os pesquisadores. Na tribo dos índios panarás, no Parque do Xingu, em Mato Grosso, foi assim. A família se hospedou em uma casa provida pelo Instituto Socioambiental Isa, uma ONG que possibilitou a entrada na aldeia. Logo cedo, o índio Kio-Kio, de 11 anos, aparecia para rondar a casa. “Ele era muito curioso e não falava português. Trouxe uma espingardinha de mamão com munição de maniva de mandioca para nos mostrar”, conta o documentarista Reeks. Kio-Kio tornou-se o mensageiro entre o casal de pesquisadores e os panarás. Certo dia, o documentarista foi convidado para pescar com a família de Kio-Kio. Os adultos saíram e deixaram as crianças sozinhas durante mais de três horas nas margens do rio. “Elas fizeram uma fogueira e assaram os peixinhos”, relata Reeks, que ficou impressionado com a destreza delas.
Renata diz que não espera transferir as experiências para os garotos urbanos, ou seja, que eles saiam fazendo fogueiras ou pulando árvores de 5 metros, mas acredita ser importante entender as possibilidades de criação e independência das crianças. Sem saber falar a língua dos indígenas, os filhos de Renata, Constatin e Sebastião, interagiram rapidamente com os índios da aldeia. Entre as coisas com que aprenderam a brincar figuram o pião de tucumã (uma semente de uma palmeira da região) ou “kuakiankiansi”, como é chamado na aldeia. Ao ser transferidos para o Parque do Xingu pelos irmãos Villas Bôas, os panarás passaram a conviver com os índios suiás. Foi com um deles que o panará Sykiã aprendeu a fazer o pião que canta.
Outra diversão dos panarás é a brincadeira da queixada. Contam os mais velhos que os antigos índios dialogavam com os animais. A queixada é bagunceira por natureza e entrava nas casas para roubar alimentos e acabava até servindo de prato principal dos índios. Nessa brincadeira, os indiozinhos se pintam de urucum ou jenipapo e saem em fila até chegar ao centro da aldeia, onde se fingem de morto, como as queixadas quando eram caçadas. Um adulto, então, vai pegando um a um e os amontoa com os outros para serem “assados”. Nessa situação, o corpo é o brinquedo e as crianças só precisam delas mesmas para uma boa diversão.
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