jun-2015
“Brincadeiras nos ensinam quem realmente somos”
A matéria pode ser lida no portal Porvir ou a seguir:
Corda, elástico, casinha, carrinho, polícia e ladrão, histórias de terror em volta da fogueira, construção de brinquedos, carrinho de rolimã e caça são algumas das dezenas de brincadeiras retratadas no documentário “Território do Brincar”. O filme é o resultado de uma viagem de 21 meses do casal de documentaristas Renata Meirelles e David Reeks pelo Brasil. Eles percorreram 14 comunidades em nove estados para estudar e mostrar as brincadeiras das crianças. Entre abril de 2012 e dezembro de 2013, estiveram em comunidades rurais, indígenas, quilombolas, no sertão, no litoral e em grandes cidades. O longa-metragem está em cartaz em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, João Pessoa e Santos. “O convite do filme é para a gente se acessar, ver o que há de mais belo dentro da gente”, afirma Renata.
Com cenas lindas e uma trilha sonora original capaz de transportar qualquer adulto de volta à infância, o filme mostra como muitas das brincadeiras se repetem, cada uma no seu contexto, em locais totalmente diferentes, como uma comunidade do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e um condomínio fechado em São Paulo. Seja em meio à pobreza ou à riqueza, as crianças mostram toda sua satisfação e “potência”, como diz Renata, enquanto brincam. O site do filme traz vídeos extras das comunidades visitadas e explicações sobre as brincadeiras.
Formada em educação física, Renata sempre trabalhou com crianças. Influenciada por pesquisadores da infância como Lydia Hortélio, Adelson Murta, o Adelsin, Adriana Friedmann e Gandhy Piorky, decidiu que era este o caminho que queria seguir. Começou a pesquisar brinquedos e brincadeiras e retratá-las em imagens. Conheceu o documentarista David Reeks em 2000. No ano seguinte, os dois passaram quase um ano na Amazônia registrando brinquedos e brincadeiras em comunidades indígenas e ribeirinhas. O projeto autônomo levou o nome de “BIRA – Brincadeiras Infantis da Região Amazônica” e se transformou no projeto de mestrado de Renata. Com a pesquisa, produziram dois curtas-metragem e o livro “Giramundo e outros brinquedos e brincadeiras dos meninos do Brasil”, vencedor do prêmio Jabuti.
Depois de terem os dois filhos, decidiram que queriam voltar para a estrada com eles. “O ‘Território do Brincar’ nasceu por causa deles. Queríamos estar perto, fazendo o que gostamos. Foi a maneira de fazer dar certo”, diz Renata Meirelles, que pretende fazer da pesquisa seu projeto de doutorado. As crianças começaram a viagem aos dois e quatro anos.
Além do filme, uma exposição sobre o projeto, realizado em parceria com o Instituto Alana, viajou o Brasil, passando por escolas, instituições e festivais. Estão planejados ainda dois livros, que devem ser lançados no primeiro semestre de 2016, e duas séries de TV, ainda sem prazo de lançamento. “Território do Brincar” deve circular ainda por festivais nacionais e internacionais. Quando sair de cartaz nos cinemas, o filme será liberado para exibições públicas na plataforma Videocamp, da produtora do longa, Maria Farinha Filmes. O filme também contou com a produção da Ludus Vídeos e Cultura. Quem tiver interesse em exibir o filme a grupos poderá se inscrever no site, segundo Renata.
“Depois que terminarmos de realizar este projeto, voltaremos para a estrada em âmbito internacional”, adianta Renata. Confira entrevista com a pesquisadora sobre o filme:
Porvir – Qual é o papel da brincadeira para o desenvolvimento da criança?
Renata Meirelles – Sinto que a brincadeira devia ser entendida como algo com um fim em si mesmo, não como algo que tenha uma finalidade. Sinto que a brincadeira deixa você ser quem você é. Expressa muito quais são seus desejos, a sua persona, para você mesmo. Você é você. Ser a gente no máximo da nossa potência devia ser sempre assim, a vida inteira. A brincadeira é um recurso para isso. Por isso, tem que ser espontânea, livre, com tempo, para estarmos em contato com a gente mesmo. Tem criança que gosta de uma coisa, outra de outra. São recursos que deixam claro quem somos no mundo. Isso já é tudo. Não que lá na frente, porque você brincou, vai desenvolver habilidade motora. Claro que desenvolve. Isso é importante também, mas, para mim, o que é mais importante é a relação muito intrínseca com o imaginário potente que temos dentro de nós e que precisamos acessá-lo para nos conhecermos. Esse imaginário é rico e vasto. As brincadeiras vão instruindo a gente sobre aquilo que realmente somos.
“A brincadeira devia ser entendida como algo com um fim em si mesmo, não como algo que tenha uma finalidade. Sinto que a brincadeira deixa você ser quem você é”
Porvir – Por que é tão importante e necessário relembrar as brincadeiras da infância aos adultos?
Meirelles – Acho que o adulto está perdendo o olhar da infância. Há uma distância entre o adulto e a criança de um modo geral. A gente só retoma esse olhar quando olha para a gente mesmo. Essas crianças nos devolvem a nossa infância, o que há de mais vivo dentro da gente. Esse é o convite do filme, a gente se acessar, ver o que há de mais belo dentro da gente. Essa é a importância de olhar para a infância.
Porvir – A trilha sonora ajuda a nos transportar para a infância. Como foi pensada?
Meirelles – A trilha foi um presente incrível para o filme. A gente gosta do grupo mineiro Uakti há muito tempo. Quando estávamos criando referências para fazer a montagem, para saber como seria o fluxo das imagens, já usávamos músicas do grupo. Quando surgiu a oportunidade de eles fazerem a trilha original, foi um presente, porque eles já faziam parte do filme. Eles são um grupo que tem instrumentos feitos artesanalmente pelo mentor deles, o Marco Antônio Guimarães. Usam materiais orgânicos, que dialogam perfeitamente com o brincar. As composições são do Artur Andrés. O grupo atua nas composições com convidados. Eles tiveram uma leitura lindíssima das imagens e do brincar, o que ampliou demais a poesia do filme. Foi essencial. Tem um lugar muito poético.
Porvir – O que escolheram primeiro: os locais ou as brincadeiras?
Meirelles – Não escolhemos uma brincadeira. Pensamos: o que será que vamos encontrar em cada lugar? O que queríamos era o espontâneo da criança. Em todos os lugares, estávamos certos de que íamos encontrar crianças que brincavam. De modo geral, em cada lugar que você vai, ouve dos adultos que as crianças não sabem mais brincar. Em qualquer comunidade pequena ou na cidade grande. Mas independente de onde vá, as crianças sabem brincar. Adultos é que perderam o elo do olhar da brincadeira. Tem muita imagem no filme do interior. Com elas, entendemos quanto as crianças que estão no interior estão mais afastadas de referências do mundo adulto e da tecnologia excessiva. Aquelas crianças que têm muito contato com o mundo adulto estão sempre sob a supervisão deles, têm alguém dizendo o que fazer. No interior, o espaço é mais autônomo, as crianças usufruem mais do tempo e do entorno de forma mais livre, o que gera um brincar bastante potente. Resolvemos ir para o interior e vimos que lá conseguimos ver o interior de todos nós. [Nosso interior] está muito mais visível lá e isso fica evidente na nossa escolha de roteiro. Foi consciente, da mesma forma como foi consciente em cada lugar priorizar o que houvesse de mais belo ali. Porque certamente em cada um desses lugares, as crianças vivem questões bem difíceis, complicadas. Nosso foco foi para aquilo que havia de belo e potente. Isso para conseguir espelhar um pouco o que a criança quer dizer, a mensagem dela. Eles querem deixar claro quanto são potentes. Fizemos um roteiro com uma grande diversidade regional e cultural, uma amostragem ampla do Brasil.
“Crianças nos devolvem a nossa infância, o que há de mais vivo dentro da gente”
Porvir – Como as crianças foram convidadas para participar do filme?
Meirelles – Chegávamos a cada lugar, nos apresentávamos para a comunidade, para as crianças e para os adultos, mostrando os filmes que tínhamos feito, curtas-metragem, para apresentar nosso trabalho e projeto. A partir dessas imagens, de crianças brincando, ficava claro o convite para que eles pudessem brincar, para que a gente pudesse brincar com eles. Quando viam o teor desse brincar, eles próprios se sentiam convidados. Quem escolhia eram eles a nós. Quem não queria não entrava na brincadeira. Vinha um grupo de crianças, dizendo: ‘quer brincar disso?’, querendo mostrar. Ficou livre e espontâneo. Eles escolheram a gente. Quem não queria nem continuava conversando. Ficava uma liberdade que fica clara nas imagens. Eles estão brincando. A gente está de certa forma brincando juntos. Antes de começar, a gente brincava, a gente ensinava brincadeiras. Fazia mesclagem de brincar e pegar a câmera e ir filmando. No making of [disponível no Facebook do filme – https://pt-br.facebook.com/TerritoriodoBrincar], dá para ver essa relação.
Porvir – Como foi fazer o filme na companhia de seus filhos?
Meirelles – Eles participavam o tempo inteiro, das brincadeiras e das filmagens. Começaram a viagem com dois e quatro anos. Ficamos dois anos na estrada. Voltaram com quatro e seis anos. Hoje, têm seis e oito anos. Eles estavam sempre com a gente. Muitas vezes, as crianças queriam brincar com eles. Tinham coisas que eles não conseguiam fazer. Os meninos faziam brinquedos para os nossos filhos. Davam para eles. Teve um envolvimento grande deles em todas as brincadeiras. Mesmo quando não conseguiam, olhavam e aprendiam.
Porvir – Por que decidiram não situar no filme os locais em que as crianças estavam?
Meirelles – Essa opção foi bem consciente. Queríamos falar da criança universal, não da criança regional. A imagem deixa claro de onde se trata o lugar. Estávamos mexendo com arquétipos da criança e do ser humano. Quando as crianças estão caçando, faz parte de um arquétipo de caçador de todos nós. Se você vai colocando a região, vai fazendo parecer que é a característica apenas do lugar. Queríamos deixar claro que era de todos nós que estávamos falando, na brincadeira de casinha, de carrinho, os meninos construtores. O propósito foi deixar o brincar e a infância mais universais.
Porvir – Vocês optaram por usar poucos diálogos e falas. Por quê?
Meirelles – Esse foi um dilema. De início, tínhamos a proposta de fazer uma narração em off. Nunca quisemos colocar especialistas falando. Depois de muito tempo, no final da montagem, percebemos que o texto da narração já estava dito na ação das crianças. Ficava mais potente se não colocássemos a narração e deixássemos a voz das crianças e todo seu teor poético. Todo conteúdo que queríamos ficou organizado no filme porque trabalhamos muito na narração e sabíamos o que queríamos dizer em cada cena. Ficou claro, na montagem e então, no final, foi decisão unânime de que não precisava [da narração]. Foi uma conquista do filme. Ficou com a voz da criança, com o gesto dela.
“O território do brincar somos nós e a relação afetiva da vida”
Porvir – O que significa a cena final, da pintura do corpo da indiazinha? Não parece brincadeira.
Meirelles – Era uma cena que estava vinculada com a narração, mas quando tiramos o texto, mantivemos a cena. Ela traduz uma relação afetiva, um processo muito afetivo da mãe com a criança. Ela deixa claro que o território do brincar vai além de um processo só de construir brinquedos ou pular corda. O território do brincar somos nós e a relação afetiva da vida. A gente sentiu que não queria terminar o filme com uma coisa que fosse expansiva, para fora, alegre. Queria dar o recado do lugar da intimidade. A cena traz a gente de volta para uma relação muito íntima, de que cada um carrega consigo mesmo o que é a infância e a relação do brincar. Retorna para dentro da gente mesmo. É uma cena linda também, com muito beleza. A gente trabalhou sobre o belo o tempo inteiro.
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