jul-2022
Território do Brincar e Alana lançam o filme “Brincar Livre: de dentro para fora”
Transformar uma pesquisa em um filme é um desafio. Um recorte é realizado e, com isso, deixa-se de lado parte do processo percorrido. Isso nos causa um sentimento de perda. Por outro lado, buscamos materializar produções audiovisuais que incluam relações subjetivas e sensíveis, e que levam o espectador a observar os fatos pelas sutilezas das imagens. Dessa forma, espera-se que a pessoa que assiste seja deslocada da perspectiva cognitiva, sendo convidada a perceber o que nos mostram as crianças — consideramos isso um ganho da pesquisa.
Este texto é uma mistura do desejo de não deixar de fora algumas pérolas que ouvimos durante um longo processo de escuta de 24 famílias, além de refletir um pouco mais sobre o que fomos percebendo ao longo dessa pesquisa. Antes de seguirmos, vamos retomar uma fase que precedeu a pesquisa atual.
Por onde começamos:
Em 2020, quando o mundo se deparou com o contexto de pandemia mundial do coronavírus, nós do Território do Brincar reconstruímos uma maneira de observar o brincar das crianças. Em situação de isolamento social, longe do corpo a corpo e do registro direto das suas expressões, conversamos com mães, pais e avós, e ouvimos como aquela fase inicial da pandemia estava sendo vivida pelas crianças dentro de casa. O nosso grupo de pesquisadores se dividiu para falar com 55 famílias, que viviam em 12 países diferentes.
A partir dessas conversas e das imagens que íamos recebendo das famílias, criamos o filme “Brincar em Casa” (veja aqui) e uma série de podcast de mesmo nome (acesso aqui).
Naquela fase inicial de isolamento (de março a julho de 2020), se por um lado o estar em casa sem poder sair era novo, estranho e confuso, por outro lado, era revelador de aspectos que estavam normalizados antes da pandemia. Ouvimos da maioria das famílias como as crianças se mostraram aliviadas em não ter tantas atividades e convites, que as tiravam do convívio direto com pais, mães, irmãos e irmãs. Fazer refeições em conjunto se tornou um símbolo desse novo tempo de isolamento. Cozinhar e comer junto (para quem isso foi possível) abriu novas formas de se relacionar em família.
Feito um rio que enche e ocupa todo espaço até onde encontrar limite, as crianças entraram para dentro das casas preenchendo cada centímetro quadrado desses ambientes. Debaixo das mesas, das camas, atrás da máquina de lavar, em cima do beliche, dentro dos armários, no telhado, no banheiro, no corrimão das escadas… não sobrou canto onde o corpo não coube, que a brincadeira não chegasse. Uma infiltração máxima de cada cantinho, que evidencia a força de expansão do brincar. “Vou até onde houver limites físicos para ir”, parecia ser a voz uníssona da notícia que nos deram as crianças nesse período. Houve relatos de mães e pais que nos contaram dos ajustes que fizeram nas varandas, armários, salas e corredores, atendendo os desejos de brincar das crianças.
Sala, quarto, cozinha, quintal… Cada cômodo convidava a um jeito diferente de brincar. A autonomia tinha a cozinha como centro. Preparar alimentos e lavar louça eram narrados pelas famílias como um vasto campo de exploração para as diversas idades e habilidades. Brincadeiras mais intimistas e simbólicas eram vistas, de um modo geral, no quarto. A vida social com jogos, telas e produções artísticas acontecia nas salas — que, inclusive, passamos a chamar de “praça das casas”. E nas casas com quintal, laje ou qualquer espaço externo, o corpo tirava o mofo e expressava sua vitalidade. Se esses lugares traziam elementos da natureza, ainda que singelos como um vaso de planta, as descobertas e experiências orgânicas eram palco de vivências significativas. Casinhas e cabanas surgiram insistentemente embaixo das mesas e atrás dos sofás, respondendo a uma busca de proteção e aninhamento. Colchões e sofás tiveram papel essencial nesse longo período de isolamento. Como representantes da parte mais mole da casa, acolheram cambalhotas, pulos, saltos, onde novos movimentos surgiam ao som de vigorosos “consegui!”. Os relatos dessas conquistas, fossem elas das formas mais genuínas e simples, vinham sempre acompanhadas de um sentimento comovente e cúmplice por quem testemunhava.
Medos, inseguranças e pesadelos eram parte do cotidiano das crianças, e foram amplamente narrados pelos seus familiares, deixando evidente o quanto elas não estavam alheias à pandemia. Mas quando a pergunta era do que estavam brincando em casa, os relatos traziam diversas possibilidades. Mesmo muito mais restrito e reduzido nas dimensões físicas e sociais, foi possível perceber como o brincar se manteve ativo dentro das casas dessas 55 famílias.
A nova etapa:
Finalizado o filme e a série de podcast “Brincar em Casa”, a pandemia seguia assolando a todos e não houve outro caminho senão dar continuidade à pesquisa no modo remoto, agora com o enfoque no tempo de isolamento e suas consequências no brincar das crianças.
Entre maio e agosto de 2021 passamos a entrevistar mensalmente 24 famílias da Grande São Paulo, com crianças de 3 a 12 anos, residentes em diferentes regiões da cidade, vivendo em apartamentos, casas, ocupação, em aldeia indígena urbana e condomínio. Crianças orientais, negras, indígenas, brancas, com algum tipo de deficiência ou não, de pais separados, de famílias homoafetivas ou sendo cuidadas por avós. Nesse período, fizemos mais de 90 entrevistas, totalizando aproximadamente 80 horas de áudio, todas transcritas, agrupadas e analisadas.
Aspectos que se repetiam, repercutiam e chamavam atenção, foram agrupados. Surge uma lista com mais de 30 temas, cada um deles preenchidos com trechos das entrevistas e o período de acontecimento. Alguns dos temas dessa lista, e de diversas reflexões do nosso coletivo de pesquisadores, foram: expressões corporais das crianças, percepções gerais sobre o contexto da pandemia, o cansaço e as dificuldades do isolamento tanto para adultos quanto para crianças, descrições de brincadeiras, as relações com outras crianças, com adultos ou com animais, o uso das telas, o tempo de ficar junto em família, as transformações corporais e as reconquistas dos espaços públicos. Esses elementos ajudaram a criar, naturalmente, um guia para o argumento e roteiro do filme.
Além das entrevistas, as famílias foram convidadas a nos enviar imagens filmadas em celular, que nutriram nossas discussões e encaminharam nossos olhares para a etapa seguinte.
A partir de novembro de 2021 até março de 2022 a equipe de filmagem do Território do Brincar captou imagens de seis dessas famílias, que representam a totalidade do grupo que entrevistamos. Em todas essas gravações, cumpriu-se um rigoroso protocolo de segurança de saúde, que incluiu testes de Covid-19 em cada responsável e na equipe de filmagem.
Além de filmar as crianças e seus brincares, ao adentrar com a câmera no contexto da cidade, surge a arte de rua. Elas emocionaram a equipe, pois os artistas respondiam à crise sanitária imprimindo na cidade muitos dos temas que estavam sendo vistos e ouvidos na pesquisa. Como as crianças, os artistas pareciam brincar na cidade, dissolvendo o concreto, desmanchando as linhas cinzas, imprimindo cor e trazendo leveza e reflexão ao período.
Com essas leituras e reflexões, alcançamos algumas evidências que trataremos a seguir, mas uma delas nos pareceu muito relevante e organizou nosso foco de olhar neste trabalho.
Percebemos, em ambas as fases de nossa pesquisa, que o brincar seguiu acontecendo mesmo em situações de severas restrições sociais e espaciais. Um brincar que, claramente, se mostrou com sérias precariedades corporais e emocionais, porém, se manteve em estado de entrega e contemplação, se organizou de forma intimista, pesquisadora e ousada, e em conexão com as necessidades intrínsecas de cada criança. Mais uma vez, o brincar nos mostrou que funciona como um sistema de equilíbrio do ser, e reafirma o impulso da própria vida. Essa é, para nós, a natureza do brincar e a voz primordial das crianças. Portanto, fazer um filme que reúne expressões de crianças que, mesmo isoladas e com tantas dificuldades ao seu redor, seguiram brincando, foi como semear esperança nesse difícil momento pandêmico.
Convite para observar:
As primeiras entrevistas trouxeram o peso da pandemia, as angústias da solidão, o estresse do excesso de trabalho e as mortes de amigos e familiares, que foram vividas e narradas, principalmente, pelas mães. Independentemente do seu contexto ou perfil, essas mulheres nos contaram como essas questões que as atravessavam afetaram diretamente as crianças em casa:
“Eu vi que ela está se sentindo sobrecarregada. Quando eu não estou em casa, ela fica muito estressada. Ela pegou uma responsabilidade que não é dela, que é limpar, arrumar, organizar. E eu trabalho das 8h às 18h. Chego em casa praticamente às 19h30, quase 20h. Eu digo que ela tem algumas responsabilidades como guardar os brinquedos que bagunçou, mas aí ela entende que a responsabilidade que é minha de limpar, lavar e cozinhar, ela está pegando isso para ela. Ela fica muito estressada, a ponto de o coração ficar acelerado. Estou querendo passar com uma psicóloga para conversar, porque eu já não sei mais o que falar. Eu estou ficando até com medo”. Camila, mãe de três crianças.
“Nesse último mês um falecimento do meu amigo, que era um irmão para mim, foi um abalo bem difícil. Então eu me senti mais longe das crianças. Acho que longe de todo mundo… E percebo que isso refletiu muito nas crianças”. Josielma, mãe de três crianças.
“Eu fiquei praticamente o ano passado inteiro trabalhando em casa, então a minha dinâmica de trabalho era assim: eu acordava, tomava um café, eu já ia direto pro computador, porque professora não dá só aula: tem o planejamento, as reuniões pedagógicas e eu praticamente trabalhava da hora que acordava até a hora de dormir, que às vezes era dez, onze horas. Muitas vezes, dormi à meia noite. Eu não saía nem no quintal para olhar o sol. E aí minha filha ficou solta ali e ela sentiu muito. Então algumas falas dela foram bem dolorosas para ouvir como mãe”. Juliana, mãe de uma criança.
Com tantas demandas para lidar, o convite que fazíamos para observar o que as crianças estavam brincando, para alguns, era penoso ou distante da realidade cotidiana. Fato absolutamente compreensível. Porém, mês a mês lá estávamos, novamente, com perguntas que, cuidadosamente, provocavam um deslocamento de olhar e levavam a uma descrição de detalhes do brincar. Para nós, toda expressão da criança é uma evidência, portanto, tudo importa. E, com o nosso interesse nos mais singelos gestos delas, íamos escutando uma narração com mais riqueza nos detalhes.
“Ele vai lá e enche o borrifador. Sai pingando na área que ainda é de piso, até a parte que é de grama sintética, onde ficam nossos vasos. Ele vai e joga duas gotas nas plantas e o resto ele sai girando em volta dele mesmo, e forma as poças de água. Ele adora pisar na poça de água. Às vezes ele joga no próprio pé, só para poder acumular”. Maíra, mãe de uma criança.
“Ele aprendeu a dar cambalhota. Só conseguiu fazer com ajuda do irmão e aí eles colocam um colchão no meio da sala e…‘vamos fazer cambalhota!’. E tem um filme que assistiram, que em algum momento um personagem fala assim: ‘eu amo gravidade’ e pula. Aí eles começaram a brincar disso também e falam: ‘eu amo gravidade’ e pulam no colchão”. Patrícia, mãe de quatro crianças.
Percebemos que esse exercício descritivo, de quem esteve presente e ativo na observação do brincar, era o suficiente para transformar algo no relacionamento desses adultos com as crianças. Em outros casos, só ao perceberem o nosso interesse na descrição do brincar, esses pais e mães se davam conta do quanto isso não era um hábito, mas poderia vir a ser. E sem que houvesse qualquer menção por parte dos pesquisadores sobre a importância da brincadeira na vida dessas crianças, esse simples ato de ver com mais consciência explicitava a natureza do brincar e a relevância da cumplicidade dos adultos nessas ações.
“Eu me percebo prestando atenção em coisas de uma maneira diferente. É legal mesmo. É isso, é mudar o olhar da casa, mudar o olhar dos adultos e dar mais chance, inclusive, para o brincar ganhar sentido. Fazer sentido para a família toda”. Juliana, mãe de duas crianças.
“Ele tem recortado muito, muito… De repente o mundo das tesouras se abriu pra ele. Ele picota picota picota. E você vai vendo aquele gibi sendo destruído, aquele papel sendo destruído. Eu, até então, estava olhando para isso como: ‘Ai meu Deus, mais papel para varrer’. Aí depois dessas nossas conversas eu pensei em olhar para isso com mais cuidado e ver o porquê ele está fazendo isso”. Laura, mãe de duas crianças.
“Suas perguntas me fizeram ver outras coisas. Eu sempre fui de observar muito as minhas filhas, mas depois que a gente passou a conversar, não vou mentir para você, comecei a observar muito mais”. Camila, mãe de três crianças.
O tempo e suas transformações:
Com o passar do tempo, as crianças apresentaram uma variação de interesses no brincar, acompanhando o contexto geral do isolamento, as condições climáticas e o próprio crescimento natural delas. Porém, como já foi dito, em nenhum momento o brincar cessou ou deixou de acontecer, mesmo que tenha se mostrado mais restrito em seus aspectos sociais, emocionais e corporais.
“No início da pandemia eles queriam fazer muito, muito movimento né? O físico deles eram as brincadeiras com uma movimentação muito grande assim, muito forte. Mas em nenhum momento a brincadeira e o brincar para eles é deixado de lado. Aqui em casa eles continuam brincando, eles não deixam de brincar. Não, não tem isso de ‘não brincar’.” Jerusa, mãe de duas crianças.
“O ano passado tinha aquela coisa das construções das barracas, assim, muito. Na minha casa sempre tinha uma barraca montada. Este ano eu acho que as construções estão menores. Na hora que eles vão construir é no Lego, é no papelão, são mais em miniaturas. Não, necessariamente, para eles entrarem dentro, de vez em quando rola uma barraca, ainda, mas não é tão presente. Outro dia eles fizeram uma super pista de Fórmula 1 com papelão, os carrinhos eles fizeram com prendedor de roupa de madeira, que eles destruíram. Cada parte do prendedor é um carrinho, e aí fazem os números de cada um e os nomes, tal”. Laura, mãe de duas crianças.
Com o passar do tempo, alguns pais e mães perceberam a importância de “tirar um tempo” para conviver com seus filhos e filhas, constatando como isso gerou um espaço de segurança para as crianças e mudou não só o estado emocional delas mas também dos próprios adultos. Portanto, apesar das inúmeras dificuldades de convivência dentro de casa, aqueles momentos possíveis de lazer em família, mesmo que momentâneos, se mostraram sanadores das angústias e tristezas desse difícil período de isolamento.
Lá fora:
Mas quando a volta aos espaços públicos passou a se tornar uma realidade, as famílias iniciaram pequenas incursões no lá fora. Não foi simples nem fácil voltar a sair de casa, mesmo que aos poucos. Caminhou-se mais pelo bairro, explorou-se mais as praças por perto de casa, tudo com o devido distanciamento e muitas precauções. Pais e mães notaram o quanto as crianças confinadas se distanciaram de um corpo mais ágil e habilidoso e perderam o traquejo social. E ao nos contar desse novo período de sair lá fora, muitas vezes as frases traziam o verbo “respirar”. Nos pareceu que a imagem do rio enchendo todos os espaços das casas, no momento inicial da pandemia, ganhava nessa fase de transição para fora características aéreas. O desejo era tirar a cabeça para fora da água, ou da casa que foi invadida pela enchente e estava sufocando a quem ali morava, para dar os primeiros respiros no espaço externo.
“Com a reabertura dos prédios, que ficou o ano passado inteiro fechado e só abriu agora depois que passou essa segunda onda, ter esse espaço para poder descer, extravasar e respirar o ar livre é muito importante.” Marina, mãe de uma criança.
“No final de semana a gente acaba tirando uma manhã ou tarde para ficar um pouquinho fora, ver a natureza, um parque, ou indo para Atibaia, também, para dar um respiro no meio do mato de lá.” Júlio, pai de uma criança.
“A gente não tá saindo ainda, a não ser para as pracinhas aqui do lado da nossa casa, que a gente vai a pé mesmo. Na praça do metrô onde tem aquele espaço aberto, antes de você entrar no metrô, ali tem um gramado, umas árvores e uma mureta onde eles sobem e ficam pulando.” Natália, avó que cuida de três crianças.
“Tem um bosque aqui perto que é maravilhoso. Nada ali é plano e eles escalam… E é a coisa mais linda ver aquelas crianças naquele bosque.” Tereza, mãe de uma criança.
Lá dentro (do brincar):
Outros temas foram compartilhados conosco nesses meses de entrevistas, todos com relatos tocantes de sofrimentos, assim como descobertas e conquistas importantes vividas tanto por adultos quanto por crianças.
Em relação ao brincar dessas crianças, ficou evidente para nós que ele sofreu drásticas restrições, com consequências ainda sem dimensões. Mas, em todos os nossos registros, transitando entre todas essas circunstâncias, lá esteve o brincar, ainda que fragilizado, enfraquecido em tônus, em relações sociais e em expressões verbais ou não verbais. Durante todo esse período pandêmico, o brincar não parou. Não só não parou, como seguiu nutrindo a criança, assim como o fazem aspectos básicos de sua sobrevivência, como a alimentação e o sono.
Podemos considerar que a natureza desse fenômeno é seguir conduzindo as crianças de maneira ininterrupta, e em circunstâncias, mesmo que precárias, em consonância com a própria manutenção da vida. Dessa maneira, é relevante dizer que o brincar é essencial, não só para as crianças, mas para seguirmos confiando na própria manutenção da vida, mesmo sem qualquer segurança nas condições externas a nós.
Coletivo de pesquisadores do Território do Brincar.
Assista ao filme:
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