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13
mar-2014

Quem anda pelas ruas de Acupe (BA) nos domingos de julho, não tem como não conhecer as tradicionais “Caretas de borracha”. São inúmeras pessoas, crianças e adultos, vestindo máscaras e roupas assustadoras e batendo em que as provoque.

Elas surgem quando menos se espera, vira-se a esquina e lá vem um grupo delas, caminhando em sua direção com olhares absolutos e penetrantes.

A comunidade inteira é palco do medo, do susto e da coragem de desafiar esse medo, nesses domingos de julho.

A brincadeira é a seguinte: as “caretas” caminham munidas de suas varinhas no intuito de atacar quem as provoque. Circulam incógnitas vestidas com trajes que as deixam irreconhecíveis, na espera de um corajoso que as desafiem, as provoquem, daí … um jogo de desafios se estabelece.

“Venha careta, venha!!!” Essa é chave para que as caretas corram em piques incrivelmente rápidos atrás desses provocadores, que por sua vez, disparam para se refugiar em alguma casa, ou simplesmente correm até a careta cansar e desistir da caça.

Assumido a desistência o provocador está livre, desarma o corpo e pode até receber um abraço da careta, sinal de que se trata de uma brincadeira. Uma verdadeira experiência de ser o caçador ou a caça, o monstro ou o guerreiro desafiador, de viver o medo e o suspense de ser pego ou a chance de bater nos provocadores.

Monilson Pinto brincou muito de careta quando criança, hoje ele faz mestrado em São Paulo na UNESP, mas não deixa de voltar a Acupe no mês de julho. Ele dividiu conosco sua experiência de menino:

Quando se coloca uma máscara, não está se escondendo, muito pelo contrário, está se apresentando, a gente está se mostrando o que somos de fato. A máscara é só um pretexto, porque na verdade é a gente que está ali, são os nossos sentimentos e vontades, é você ali na hora, é tudo o que você sente, você se entregando para aquilo, colocando tudo o que você tem de si para fora, e oferecendo o que você tem para os outros“, diz ele.

E continua:

A criança veste a careta porque ela tem medo de careta. Ela tem curiosidade para saber do medo, ela quer viver na pele esse medo, como enfrentar esse medo, e quer provocar medo nas pessoas também”.

É a chance das crianças viverem o próprio medo em doses que conseguem controlar.

Cada um decide o que quer viver, e se quer ou não entrar no jogo. Tem os que gostam de vestir a careta, ou os que preferem correr delas, podem mudar de papel de domingo para domingo, ou simplesmente tem dias que não querem participar de nada, a escolha é livre. Mas a oportunidade de viver e enfrentar o medo é de todos.

Para se tornar uma careta é preciso alugar, com alguns dias de antecedência, uma dessas máscaras industrializadas, afinal, não há máscaras suficientes na cidade para tantos meninos e meninas. Por R$ 4,00 você tem o direito de usá-la por meio período.

Além da máscara é necessário roupas preferencialmente nas cores vermelha, preto ou branca e que cubra o corpo inteiro, sem deixar o mínimo vestígio de quem veste esse traje. Casaco, calça, meia, luva e capote são as indumentárias. Usa-se o que está disponível, principalmente para se fazer o capote. Já vimos capotes feitos com toalhas de mesa, cortina velha, tecido tirado de guarda chuva, retalhos de EVA, ou o que estiver à mão. Todo esse traje pode também ser alugado, o que gera uma adaptação ao corpo do novo freguês com cintos de cordas amarradas na cintura, mangas mais cumpridas que os braços e toalhas de mesa compridas arrastando pelo chão;  o que importa é estar dentro, e ser totalmente coberto.

Estar irreconhecível é a regra básica das caretas, portanto, nem falar é permitido, afinal alguém poderia reconhecer a voz. Ficam calados por horas só assustando os outros com um caminhar capenga, ou pela apresentação de seu rosto horripilante e suas varinhas de chicote.

Atrás das máscaras é possível fazer coisas que não se tem a coragem de assumir em outros momentos. Há, por exemplo, inúmeras cenas de caretas se aproximando de meninas bonitas, jogando o jogo do flerte sem, porém, revelar quem são.

Mas vandalismos ou pessoas que saiam machucadas dessa brincadeira, não há. A violência é do tamanho da sátira, do desafio e da coragem de cada um.

Mas não foi sempre assim.

Antes as caretas eram de papelão, não existia essa de borracha, mas devido as reclamações da população do excesso de violência que era praticada, então algumas pessoas decidiram fazer que elas saíssem em bloco, sem bater e sem correr atrás. Então virou um bloco com uma banda que acompanha o grupo só com uma simulação de correr e assustar os outros. Então como não tinha mais quem fizesse as máscaras de papelão para sair na rua, em fora de resistência, começaram a usar essas máscaras industrializadas“, conta Monilson.

Nessa época só existiam caretas de adultos e só nas tardes dos domingos, criança não brincava de careta. As crianças começaram a sair de manhã de careta, porque de tarde elas tinham pavor das caretas adultas e não tinham como encarar aquilo.

Os adultos investem mais no modo de se fantasiarem e criam personagens que são ao mesmo tempo engraçados e assustadores. Há caretas adultas que se fingem de grávidas, gorilas enormes, e varinhas que carregam morcego e rato morto de verdade. Já as criança vivem o papel na essência do medo, sem muitos investimentos extras.

Já as crianças bem pequenas vivem essa brincadeira a seu modo, vestem partes das roupas e máscaras durante a semana, quando ninguém mais está de careta, sem a necessidade de assustar ou correr atrás de alguém. Vivem essencialmente a fantasia da careta.

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A maior parte da população de Acupe apoia essa manifestação. “Coisa de meninos para se divertirem, não há nada de errado no que fazem” diz a mãe da Érica, uma das meninas que acompanhamos desde o momento que se vestiu de careta até as investidas contra seus provocadores.

Mas há também quem a desaprove. Presenciamos cenas de pais saindo pelas portas ou janelas de suas casas erguendo um pau e ameaçando quem entrasse atrás de suas crianças. “Venha aqui que eu te pego de verdade, vem!” gritou um pai atrás de uma careta. Porém, já ouvimos dizer que a mesma pessoa que reclama que as caretas estão muito violentas, ela mesmo questiona se as caretas não vão sair.

De um modo ou de outro as caretas resistem ao tempo, à cultura e a todas as nuances da vida moderna.

Quem criou essa história é difícil de dizer, mas entre algumas versões há essa contada pelo Monilson: “Os negros quando fugiam iam à pé, e como os caçadores estavam à cavalo a possibilidade de captura era muito grande. Os negros sabendo de todos esses mitos que assustavam os caçadores, tiravam a casca do coco para fazer máscaras para assustá-los, daí é que vem a careta. Surge da necessidade de assustar quem queria capturar os negros. Essa é uma das histórias, existem outras, mas essa é a que eu sempre conto.”

Um história que continua incorporada nos Acupenses.

Isso alimenta a identidade dessa comunidade, que mostra quem ela é. Você não vê no discurso das pessoas daqui referências aos sofrimentos dos negros escravos, suas lutas nos engenhos, etc. Esse discurso já acabou e hoje está incorporado, está nos domingos do mês de julho, está nos batuques dos terreiros” completa Monilson.

Texto e fotos: Renata Meirelles

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